O seu coração estava dividido entre dois amores. De um
lado, um velho amor que se desfazia e do qual, se despedia. Tinha estado ligado
àquela mulher por anos de afeto manso e tranquilo, de amizade real e sincera.
Coisa alguma poderia negar este fato. Durante este tempo, ele se sentira como
alguém que caminha por uma planície colorida, sem montanhas e abismos, o ar
claro e sem brumas, sabendo exatamente o que o esperava. Seu amor havia
alcançado aquela condição de certeza sem surpresas, livre dos sofrimentos do
ciúme e das dúvidas que são o inferno dos apaixonados. E era isto que ele
deixava para trás. E por isto sofria. Encontrara uma outra mulher cuja imagem,
por razões que ele não podia compreender, despertara das cavernas da sua
memória uma outra cena cheia de mistérios, de perfumes exóticos, de penumbras
eróticas, onde crescia o fruto dourado da vida. E ali, nesta nova cena que se
refletia nos olhos daquela mulher, e se via como um homem diferente, de corpo
jovem dotado de asas, pronto a voar pelo desconhecido, em nada semelhante ao
ser doméstico ruminante que morava na cena do seu primeiro amor.
Apaixonara-se por ela. Apaixonara-se pela
bela cena que via como aura mágica, em torno daquele rosto. Apaixonara-se pela
sua própria imagem, refletida naquele olhar. Queria tê-la para poder ter-se
deste modo intenso que nunca antes experimentara. Era preciso dizer adeus.
Deixar para trás a antiga companheira fiel, e a cena pálida, descolorida e
monótona que aparecia em sua aura cansada. Assim são os velhos amores: fiéis e
cansados… Mas a ideia de magoá-la o horrorizava. Chegar para ela e simplesmente
dizer: “Estou apaixonado por outra mulher. Vou-me embora…” — isto seria uma
grosseria que ele nunca se perdoaria. Queria poupar-lhe a dor de ver-se deixada
só, na plataforma da estação, enquanto ele partia.A dor de quem fica é sempre
maior.
Parece-se com a dor após
sepultamento,quando se volta para a casa, e o espaço se enche com a presença de
uma ausência. Na verdade a dor da partida é maior que a dor da morte. Pois o
morto se foi contra a vontade. Partiu me amando. Partiu triste por me deixar.
Nenhuma alegria o espera. Por isto os pensamentos de quem ficou descansam tranquilos,
sem serem perturbados por fantasias dos novos amores e prazeres à espera do que
morreu. Pois nada o aguarda. A morte pode ser a eternalização do amor. A morte
fixa a bela cena, enquanto a partida destrói a bela cena. O apaixonado sofreria
menos com a morte da pessoa amada que com a sua partida para um novo amor. Quem
quiser entender as razões dos crimes de amor terá de levar isto em
consideração. Quem mata por amor é como um fotógrafo que deseja eternizar a
imagem amada na bela cena. Não era isto que Cassiano Ricardo sugeria no seu
poema ´ Você e o seu retrato`? Ele pergunta: Por que tenho saudade de você, no
retrato, ainda que o mais recente?E por que um simples retrato, mais que você,
me comove, se você mesma está presente? E depois de sugerir várias respostas
ela faz a seguinte afirmação: Talvez porque, no retrato, você está imóvel, sem
respiração…Você, viva, ingrata, é a permanente possibilidade da surpresa, do
gesto que irá destruir a beleza. Mas, no retrato, você fica imóvel.
Transforma-se em quadro. Quem mata por amor é um fotógrafo (cruel) que
imobiliza a bela cena. E assim a coloca na parede, como objeto de saudade e
devoção, para sempre. Bem dizia Roland Barthes que a única coisa que se
encontra fixada na fotografia, qualquer fotografia, é a morte.
Sim, o que fazer? Como partir sem fazer
sofrer demais uma pessoa boa, por quem se tinha um afeto sincero? Por vezes uma
mentira é o melhor caminho. Há verdades cruéis e mentiras bondosas. Na
encruzilhada ética entre a verdade e a bondade, que a bondade triunfe. Imaginou
então uma mentira. Iria dizer que estava em dúvidas sobre se ela realmente o
amava. Que por vezes ele a observava com o olhar perdido, e que imaginava seus
pensamentos distantes, andando por outros amores. Que, inclusive, durante o
sono, ela dissera repetidas vezes o nome de um homem (Pobrezinha! Não teria
formas de contestá-lo. Pois estava dormindo…). Assim, ele queria que os dois se
dessem um tempo. Que ficassem longe, provisoriamente, a fim de que os
sentimentos pudessem ficar mais claros. A distância é um excelente remédio para
as confusões do amor. E assim ele fez. Ela ouviu suas alegações tranquilamente,
sem sobressaltos aparentes. Terminada a sua fala, quando ele se preparava para
ouvir as contra- argumentações que deveriam se seguir, o que ele ouviu foi
outra coisa: — Sabe? Cada vez mais me surpreende a sua sensibilidade. Como foi
que você percebeu? Fiz tudo para esconder meus sentimentos de você! Eu não
queria magoá-lo! Mas agora que você já sabe, é bom assumir a nossa verdade. De
fato, há um outro. Chegou a hora de dizer adeus…
O que aconteceu naquele instante ele nunca
pôde compreender. Pois aquelas palavras eram tudo de que precisava. Estava
livre para se entregar sem culpas a sua nova paixão. Mas a única coisa que ele
sentiu foi a dor imensa de uma paixão que repentinamente explodia por aquela
mulher que lhe dizia adeus… E ele se viu solitário e triste, na plataforma
vazia da estação, enquanto ela partia… Só lhe restava voltar para a casa vazia,
onde ninguém o esperava… Como eu já disse: não é a pessoa que amamos; é a
cena”.
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